04 janeiro 2012

leitora ortodoxa protestante

Depois de presenciar um acidente na Avenida Paulista na ida e fazer uma breve passagem pela PUC, tomo um ônibus sentido metrô Ana Rosa sem saber exatamente onde descer. Em minhas mãos, Me Roubaram uns Dias Contados, livro escrito por Rodrigo de Souza Leão, um carioca que muito me encantou quando, no trabalho, publiquei sobre sua exposição no MAM-RJ.

Rodrigo era jornalista por formação, mantinha o blog Lowcura, lançou livros, e-books e co-editava a revista eletrônica Zunái, que leio há muito tempo. Mas nunca havia ouvido falar dele ou feito a conexão. Foi diagnosticado com esquizofrenia. Morreu aos 43 anos, numa clínica psiquiátrica, de ataque cardíaco. Falou constantemente sobre a morte em sua obra. Ora assustado, ora resignado, ora debochado. Sua poesia é doída. Sua prosa é maluca, absurda e, às vezes, ingênua.

O livro em questão pertence a um amigo, mas ando tão grudada ao bichinho que é como se fosse meu. Sou uma leitora religiosa. Meus livros viram bíblias. Ando com eles, literalmente, debaixo do braço e só assim me sinto segura.



Desço na Avenida Paulista, no ponto em frente ao Conjunto Nacional. Sem maquiagem, de jeans e camiseta do Led Zeppelin, bato meus chinelos vermelhos Augusta abaixo. A noite está quente e os transeuntes parecem felizes. Brasileiro sempre parece mais feliz no verão. Frevo, BH, Charm, nenhum dos botecos me apetece. Até que encontro um aparentemente novo, meio vazio, na calçada do Vitrine, um pouco antes. Peço uma Brahma e começo a devorar avidamente as palavras de Rodrigo. Mal enfrento a primeira página e dois rapazes sentam à mesa em frente e ora, já fico logo encucada, me perguntando se eles estão dispostos a um silêncio angelical ou o quê. O mínimo, visto que quero ler o meu livro e não consigo ler com vozes. Não sou dotada de tanta concentração. Ademais, tenho graves problemas de memória e atenção.

Um deles usa chapéu Panamá, óculos de armação fina e tem a maior feição de falador que já vi em vida. Ok, eles estão no bar, não ficarão em silêncio - compreendo solenemente. Pedem uma cerveja, acendem seus respectivos cigarros e começam a proferir histórias, causos e bafos sobre suas vidas e a vida alheia. O principal assunto são as mulheres. De forma respeitosa, falam sobre mulheres legais, que “não pressionam quando o cara não quer”. Em questão de segundos, amplificadores, pedais, timbres e cordas viram o mote da conversa, que me parece muito animada. Legal. Resignada, volto ao livro e uso todas as forças possíveis para abstrair das vozes masculinas que se enfiam em meus ouvidos.

De soslaio, observo um rapaz entre a calçada e a rua, olhando ao redor, me fitando, todo esquisitão. Parece desconfiado, não sei. Parece que está prestes a fazer uma loucura. Esqueço-o em um minuto, até que sinto seus pés caminhando em minha direção. Ele é magro, tem o cabelo raspado e usa uma camiseta branca.

- Que livro você está lendo?, era só o que me faltava.

Mostro a capa e dou um sorriso qualquer. Ele diz que se identifica comigo porque também “gosta de ler por aí”. Sorridente demais para o meu gosto, despisto-o, dizendo que quero terminar o livro hoje. Ele vira a cabeça para ver quantas páginas faltam e faz uma careta de “você não vai conseguir”. Sem saber muito o que fazer, enfio a cara nas páginas para que ele me deixe em paz e dá certo. Ele some. Se estou com um livro, não estou sozinha. Que mania. Que mania tem o universo de achar que uma pessoa sem ninguém ao lado quer companhia. Não quero. Obrigada.

Agora, sim. Agora posso ler Rodrigo tranquilamente, no bar, de chinelos, numa noite quente. Vitória. Faço um movimento braçal que simboliza a vitória, uma mistura de muque com “yeah”. Sou uma vitoriosa. Agora, sim.

Páginas e páginas depois, meus olhos começam a embaçar, não consigo memorizar o que acabo de ler. Tento culpar os rapazes falantes, tento culpar suas mulheres legais que não pressionam os caras que não querem, tento culpar as pessoas que me abordam pedindo isqueiro, cigarro, pessoas que querem me vender relógios e correntes de prata (!), pessoas que gritam, meninos que descem a rua de skate, tento culpá-los, quero culpar todos vocês, que não param de viver, de se mexer, de falar, de existir e eu quero ler meu livro, eu tenho esse direito, deixem-me em paz, eu também pago impostos! Mas percebo que não é o skate, não são as abordagens, não são os dois que falam mais que a boca, não, não é isso que não me permite a total concentração, que não me permite focar as letras impressas e entender o que Rodrigo está me dizendo, cheio de poesia, dor e lowcura. Olho para o meu corpo, olho para os meus pés, olho para a mesa e, com horror, concluo: a cerveja me traiu.

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