27 setembro 2011

um homem pela cidade II

[numa versão antropológica-dramática]


MULHER

Numa noite calada, meteu-se a tentar delirar sem exprimir qualquer sentimento. Enfiou-se num vestido velho e empertigou-se em frente ao espelho. Com o dinheiro na bolsa, saiu. Quando adentrou o lugar, e estava escuro, resolveu caminhar com passos de balé por entre a gente toda. Fatigada de conversas não-engendradas, escolheu o silêncio como elemento principal de sua atuação. Muda, bebericava gotículas da bebida laranja em seu copo: cansara-se de papinho. Do alto de seu sapato sem salto, era nada. Rasa como uma piscina infantil. Muda feito um lambe-lambe. Com os cabelos crescidos.


HOMEM

Passa a encará-la um homem de olhos muito claros. Mais claros que o céu amanhecendo. Eram olhos de se enfiar dentro e buscar um quê, um misancene ao menos, uma conversa unilateral de coxia que fosse, foda-se. Aproxima-se dela tão soturno quanto o escuro e ao percebê-la observando os rostos-enfim, disse:

- Estão todos fingindo.


MULHER

Ainda com os olhos girando pelas feições e pelo papear instalado – e muda, completamente (já que não se pode ser meio) muda –, deixou as pálpebras pesarem, olhou os pés.


HOMEM E MULHER

O homem com a boca seca vestia-se bem (em cores escuras) e parecia refinado perto dela, que escolhera um vestido qualquer para um desencontro de pessoas que fingem.

- Tenho estado belicosa, rebateu.

- É o que se espera de uma mulher como você.

Não era um sentimento que ambos compartilhavam, não era dark, não era sombrio. Os dois conseguiram encontrar algo que não se encontra, assim, assim, sozinhos, num lugar repleto de pessoas, pessoas que reclamam, pessoas que falam sobre pessoas, pessoas que transam, pessoas que levam suas vidas, pessoas que cumprem com sua carga horária ao trabalho, pessoas comuns, interessantes talvez, frágeis e insossas também, pessoas que conviviam entre pessoas. Mas o momento dizia: é muito difícil ser pessoa.

[ser caeiro]

Caminharam até um lugar em que podiam fumar em paz, sem nenhuma daquelas pessoas tão pessoas. Puderam se estranhar, se entranhar, se observar, sem medo de serem traídos pelos próprios olhos [pois que os olhos traem, é dever de todos saber essa regra]

Queimaram seus cigarros, que queimavam, que cigarros que queimavam, tostavam, incineravam. Apagaram seus cigarros que queimavam e seus silêncios e acenderam outro cigarro. E o que tinham a falar traduzia-se sedutoramente em barulho de cigarro queimando, tostando a ponta, laranja/vermelha, tostando, tostando, em brasas. Além também, sim, de suas pós-tragadas, o momento em que despejavam no universo toda a fumaça que há pouco habitara-lhe os pulmões secos e cinzas e tristes.

E, sozinho, como homem sozinho que era, acompanhou a mulher até o táxi, que estava com a mente em turbilhões, chega, uma noite como aquelas era suficiente para encher-lhe a cabeça de coisas e ideias, [era então fervorosa, Hegel de si, idealista, idealista - repetia]. O táxi levou a mulher. O táxi levou a mulher.

MULHER

O táxi levou a mulher.

HOMEM

Caminhou sozinho pela calçada, pensando. Acendeu outro cigarro. Voltou para a festa.

[continua...]

19 setembro 2011

um homem pela cidade I

pois que atrevo até mesmo a dizer
que dinamites não o impediriam de atravessar a rua
tampouco pólvora nos bolsos
ou tremor nos dedos

é um belo rapaz

atravessa correndo
não olha o céu
nem os carros

entra na primeira padaria que seus olhos alcançam
pede um café puro
e, nervoso, sorve numa só golada
a garganta arde como um inferno
a língua, agora sem sensibilidade
questiona-se como será
quando encontrar outra língua

um nirvana trôpego
um pauperismo
um silêncio
uma laconicidade

seu coração é como um bonde
atravessa a cidade a fervilhar pessoas
teme o avanço dos caminhões
teme pássaros maquinados a voar
mas tem de viver e correr
dentro ou fora dos trilhos

quando berrou o primeiro berro
recém-saído da mulher que lhe pariu
já ali não teve escolha

do útero para o mundo
- somos angustiados por estarmos fora do útero
até mesmo aqueles calculados in vitro
mas não menos humanos -

puro e enfiado numa camisa cafona
estava às pressas
procurando a mulher que lhe encantou
noutra noite

mas a rua é longa
os bares são muitos

por um segundo deseja estar em casa
a se masturbar devagar debaixo das cobertas
assistindo um filme qualquer
a pensar que nenhuma mulher lhe merece
a pensar que nenhuma mulher merece seu pau

mas há um propósito esta noite
grandioso
magnificente
e que talvez desencadeie numa tenebrosa epopeia:
reencontrar a mulher que lhe estremeceu os ossos

[continua...]

18 setembro 2011

atrás de você o céu é laranja

pinto as unhas enquanto você lê o jornal
gracioso como um leão
doce como uma rosa
e silencioso
como você é
quando tem de ser

passo a ponta dos dedos sobre as tampas
seleciono um dos vidrinhos
e a cor escolhida é um rosa que dança pelo laranja

te olho
olho mais
até ser agraciada
com a tua boca

e sela o céu em mim
teu beijo azul
com gosto de pitanga
você você

meu pequeno
meu rei
meu homem
que me olha
que me molha
meu homem
minha reza
meu barco
que navega
lindo