23 janeiro 2012

trazendo na mala bastante saudade

saiu de casa carregando a mala com a mão direita
a esquerda limpava as lágrimas
que caiam como a rara chuva

[chorava uma estrada]

ela permanecia sentada
chorava em silêncio - muito
o menino pequeno se enroscava na perna do homem
como quem dissesse
por favor, não

tão sem dinheiro que estavam
quase passavam fome
farinha com água todo dia
todo dia farinha com água

mas partia por pouco tempo
um ou dois anos
dizia

a barriga da moça anunciava algo
respirava também
logo teria nome
fosse maria
fosse joão
fosse um ainda mais bonito
wellington, pensou
nem a grafia sabia
mas pensava: uélinton

as lágrimas escorriam até o bigode castanho do homem
suas mãos inchadas e cascudas limpavam parte do rosto
mas de nada adiantava
sofria
amava a moça
amava o pequeno
e amava seu bebê

o menino passou também a chorar
inspirado pelos pais
pois que abriu um berreiro
não sabia chorar em silêncio como os dois
e dizia não, papai
não

o pai beijou-lhe a testa
e disse se cuide, menino

foi até a moça
beijou-lhe a mão
beijou-lhe a testa
beijou-lhe a barriga
e disse

eu volto

17 janeiro 2012

omelete

são pequenas sobras alocadas nas suas pálpebras
é o restinho de um bater
de asas
de passarinho

não

é o seu último fechar de olhos antes do sono finalmente chegar

te escrevi algo hoje
nada muito profundo
deixei em cima da privada

ontem você fez uma omelete
e sentada como uma criança comportada
ri porque achei omelete uma palavra bonita

e esse sapato que nem é meu
todo molhado
me rendeu conversas solitárias
vim na chuva dizendo
"mas quanta coragem, quanta"
segurando o guarda-chuva azul

só chove
agora só chove
setembro chove

tudo que te tem no meio
me faz virar um leão
acho que mataria um dinossauro, pequeno

o que mais
o que mais

contei meu infortúnio
"cheguei lá com o sapato furado, o pé todo molhado"
e você me disse que sapato furado era um bom nome de música

esses dias dei uma espiada na janela
um casal dançava na rua
encostados no carro, a porta meio aberta
se beijavam e dançavam
estava tão bonito que fechei a janela e sorri
daí pensei em você
e lembrei de quantas vezes a gente dançou em silêncio

a gente sempre dança em silêncio

06 janeiro 2012

para uma tortura bastar - parte I

ele apalpa os bolsos procurando a chave do carro. quer ir embora. não tenho vontade de prendê-lo. é um homem com espírito de pássaro. gostaria de pensar que nesse exato momento ele me olha e me deseja. não resisto. não quero ceder, não quero exprimir uma gota de sentimento, caralho, não quero. há algo na tua voz, bernardo. na tua voz, não sei, na tua presença, no teu nome, nos teus braços, há algo que me suga, que me puxa, algo que me conduz a um mar absurdo de horrores, que me faz gostar do teu timbre, das tuas ideias esquisitas, da cor do teu cabelo, dos teus ombros quadrados, do jeito com o qual você empunha o meu violão velho.

a franja cobre meus olhos. sentada, aperto os lábios e te olho como uma criança. não quero dizer nada. não quero te agredir com os meus desejos. simplesmente não posso controlar o teu nível de irresistibilidade diante dos meus olhos. não posso negar que a tua prosabilidade e tua poética enlouqueceriam qualquer mulher que admire um bom proseador. você é meu inferno. hoje conversei com minha amiga sobre os teus ombros e sobre tuas mãos. ela disse que você tem mãos de escritor. eu ri. mas enquanto você falava ao telefone, lá longe, eu olhava pra elas, se mexendo. você sorria ao telefone. sorria e falava com as mãos. ainda que um tanto tímido. eu disse que você tinha sorriso de escritor. ela rebateu com "escritor não sorri". eu disse que sorri, sim. você sorri. você é escritor. tudo ficou quieto. um silêncio me cortava. te olhei.

a noite do pancake na cara

na verdade, eu não esperava nada. quando te conheci, não esperava nada. você aparecer foi o sinal do fim dos tempos. passamos toda a festa conversando bobagens. todos vazaram. vazamos. o elevador estava quieto. um silêncio nos cortava. a vila madalena gritava. topei seu convite e enfrentei um copo de cerveja às 4 da manhã. eu, que não bebo e estava mais sóbria que o bozo numa clínica de recuperação para apresentadores drogados. uma moça com a cara cheia de pancake e um nariz de palhaço passou por nós e perguntou se você "não queria comprar uma rosa para sua namorada". deuses. sou naturalmente avermelhada. prefiro não imaginar a coloração das minhas bochechas naquele momento. brega. que brega, pensei. odeio rosas. não há flor mais cafona. rosas são para mães.

(mas eu aceitaria a rosa)

há manhã no amanhã

o apartamento vazio, o dia clareando, seus olhos na minha mente. não consegui dormir. rodei na cama até as sete da manhã. fiz um chá. deixei gelando na pia. enfrentei o chuveiro - precisava acalmar aquela qualquer coisa que apitava feito um trem na minha faringe. cruzes. o que tem esse homem?, eu pensava. eu não queria um homem na minha vida. não queria ninguém. estava num momento crucial de tudo. meus planos, meu emprego. porra... o que é que esse cara tem?

o chá gelou. sorvi três goles e deitei. o edredon queria dizer alguma coisa. o teto queria dizer alguma coisa. minha calça jeans jogada ao chão queria dizer alguma coisa. olhei meu mural. a foto 3x4. o apartamento ainda respirava restos do antônio. peguei no sono planejando uma possível mudança. os planos se confundiam com o início de um sonho leve e branco. maravilha. dormi.

acordei às 13h com o celular apitando. mensagem.

"curioso"

caralho... só escreveu isso porque sabe que irei perguntar o que, o que é curioso. o que, bernardo. conte-me.

"o quê?", enviei

precisava comer. fiz uma gororoba com ovos, tomate, cebola e queijo. na salada, rúcula, alface e agrião. sentia um restinho amargo de cerveja na boca. nunca gostei de cerveja. o primeiro gole que dei foi com papai, um grande cervejeiro. liguei a tv para assistir qualquer bobagem. qualquer bobagem me faria feliz ou me faria sorrir ou me faria dançar ou me faria apertar a barriga do rei, fruto de minhas decisões junto a antônio. um gato preto e branco que adotamos de uma ong. quando terminamos, nem foi preciso decidir com quem rei ficaria. comigo. antônio sempre trabalhou feito um louco. amava o gato, mas o tempo que tinha livre era dedicado a mim. fomos muito felizes, pensei.

antônio me conheceu ainda menina. éramos vizinhos. eu tinha 9, ele 19. era um cara quieto, metido a intelectual. usava uns oculinhos nerds. penou por quase 10 anos em teresópolis, no rio. formou-se médico às custas de ralação total. morou num cubículo. quase enlouqueceu. quando voltou para são paulo, me encontrou fresca, mulher, crescida. qualquer coisa que nunca houve entre nós quando pequenos virou uma paixonite maluca. nos grudamos. éramos malucamente apaixonados e felizes. com menos de seis meses de namoro, juntamos nossos livros na mesma estante.

antônio sempre foi muito bom. nos primeiros anos de hospital público, quantas e quantas noites não o segurei enquanto chorava feito um bebê. pacientes, pressão, medo. tudo o fazia chorar. principalmente seus pacientes. principalmente as crianças.

meu celular apitou. sms. here i go. no que estou me metendo, por deus, no quê, alguém me diz.

"te conhecer"

o quebra-cabeça reúne as peças e constrói "curioso te conhecer".

era inevitável sorrir. obviamente fez muito bem para o meu ego ser galanteada por um cara bonito e sei lá, um cara como bernardo. mas não queria confusão. não queria homem. pensei em não responder ou responder depois.

não respondi. uma semana exatamente se passou. quase não lembrava dele. estava metida em coisas do trabalho. acabava trabalhando de casa aos fins de semana. pilhas e pilhas de coisas para ler.

ele me ligou.

- alô.

- oi, luiza.

- bernardo? tudo bom? como você está?

- mais.

- mais o quê?

- acho que eu preciso te conhecer mais.

- por que você acha isso?

- são muitos motivos.

- preciso saber se são suficientes...

- eles são. além do que, sonhei com você e não há nesta vida algo mais perturbador do que sonhar com uma mulher como você. é praticamente impossível não querer te ligar ou te ver. decidi que não posso mais sonhar com você. é uma tortura ingrata. e para não sonhar mais com você, algo me diz "convide-a para sair, convide-a mesmo que ela diga não".

- e se eu disser não?

- bem, se você disser não, não sei ainda. talvez eu tenha que sonhar com você pelos próximos 932 anos. acho que 932 anos é tempo suficiente para uma tortura bastar e finalmente matar um homem comum feito eu.

- eu aceito sair com você se você prometer que não irei acordar em uma banheira de gelo sem meus rins.

- acho que rins intactos é algo que posso prometer.

- e o que você não pode prometer?

- assim você exige muito de mim. não montei um script de telemarketing. não tenho todas as respostas.

- às 20h. o que acha?

- lindo.


[continua...]

04 janeiro 2012

leitora ortodoxa protestante

Depois de presenciar um acidente na Avenida Paulista na ida e fazer uma breve passagem pela PUC, tomo um ônibus sentido metrô Ana Rosa sem saber exatamente onde descer. Em minhas mãos, Me Roubaram uns Dias Contados, livro escrito por Rodrigo de Souza Leão, um carioca que muito me encantou quando, no trabalho, publiquei sobre sua exposição no MAM-RJ.

Rodrigo era jornalista por formação, mantinha o blog Lowcura, lançou livros, e-books e co-editava a revista eletrônica Zunái, que leio há muito tempo. Mas nunca havia ouvido falar dele ou feito a conexão. Foi diagnosticado com esquizofrenia. Morreu aos 43 anos, numa clínica psiquiátrica, de ataque cardíaco. Falou constantemente sobre a morte em sua obra. Ora assustado, ora resignado, ora debochado. Sua poesia é doída. Sua prosa é maluca, absurda e, às vezes, ingênua.

O livro em questão pertence a um amigo, mas ando tão grudada ao bichinho que é como se fosse meu. Sou uma leitora religiosa. Meus livros viram bíblias. Ando com eles, literalmente, debaixo do braço e só assim me sinto segura.



Desço na Avenida Paulista, no ponto em frente ao Conjunto Nacional. Sem maquiagem, de jeans e camiseta do Led Zeppelin, bato meus chinelos vermelhos Augusta abaixo. A noite está quente e os transeuntes parecem felizes. Brasileiro sempre parece mais feliz no verão. Frevo, BH, Charm, nenhum dos botecos me apetece. Até que encontro um aparentemente novo, meio vazio, na calçada do Vitrine, um pouco antes. Peço uma Brahma e começo a devorar avidamente as palavras de Rodrigo. Mal enfrento a primeira página e dois rapazes sentam à mesa em frente e ora, já fico logo encucada, me perguntando se eles estão dispostos a um silêncio angelical ou o quê. O mínimo, visto que quero ler o meu livro e não consigo ler com vozes. Não sou dotada de tanta concentração. Ademais, tenho graves problemas de memória e atenção.

Um deles usa chapéu Panamá, óculos de armação fina e tem a maior feição de falador que já vi em vida. Ok, eles estão no bar, não ficarão em silêncio - compreendo solenemente. Pedem uma cerveja, acendem seus respectivos cigarros e começam a proferir histórias, causos e bafos sobre suas vidas e a vida alheia. O principal assunto são as mulheres. De forma respeitosa, falam sobre mulheres legais, que “não pressionam quando o cara não quer”. Em questão de segundos, amplificadores, pedais, timbres e cordas viram o mote da conversa, que me parece muito animada. Legal. Resignada, volto ao livro e uso todas as forças possíveis para abstrair das vozes masculinas que se enfiam em meus ouvidos.

De soslaio, observo um rapaz entre a calçada e a rua, olhando ao redor, me fitando, todo esquisitão. Parece desconfiado, não sei. Parece que está prestes a fazer uma loucura. Esqueço-o em um minuto, até que sinto seus pés caminhando em minha direção. Ele é magro, tem o cabelo raspado e usa uma camiseta branca.

- Que livro você está lendo?, era só o que me faltava.

Mostro a capa e dou um sorriso qualquer. Ele diz que se identifica comigo porque também “gosta de ler por aí”. Sorridente demais para o meu gosto, despisto-o, dizendo que quero terminar o livro hoje. Ele vira a cabeça para ver quantas páginas faltam e faz uma careta de “você não vai conseguir”. Sem saber muito o que fazer, enfio a cara nas páginas para que ele me deixe em paz e dá certo. Ele some. Se estou com um livro, não estou sozinha. Que mania. Que mania tem o universo de achar que uma pessoa sem ninguém ao lado quer companhia. Não quero. Obrigada.

Agora, sim. Agora posso ler Rodrigo tranquilamente, no bar, de chinelos, numa noite quente. Vitória. Faço um movimento braçal que simboliza a vitória, uma mistura de muque com “yeah”. Sou uma vitoriosa. Agora, sim.

Páginas e páginas depois, meus olhos começam a embaçar, não consigo memorizar o que acabo de ler. Tento culpar os rapazes falantes, tento culpar suas mulheres legais que não pressionam os caras que não querem, tento culpar as pessoas que me abordam pedindo isqueiro, cigarro, pessoas que querem me vender relógios e correntes de prata (!), pessoas que gritam, meninos que descem a rua de skate, tento culpá-los, quero culpar todos vocês, que não param de viver, de se mexer, de falar, de existir e eu quero ler meu livro, eu tenho esse direito, deixem-me em paz, eu também pago impostos! Mas percebo que não é o skate, não são as abordagens, não são os dois que falam mais que a boca, não, não é isso que não me permite a total concentração, que não me permite focar as letras impressas e entender o que Rodrigo está me dizendo, cheio de poesia, dor e lowcura. Olho para o meu corpo, olho para os meus pés, olho para a mesa e, com horror, concluo: a cerveja me traiu.

01 janeiro 2012

poemas que fiz quando te conheci I

escrito em 16/08/2007

e há de enlouquecê-las. sim, sim. todas elas, meu amigo: mulheres fumantes, loiras, junkies, carnívoras. ele está a solta, tudo o que deseja é enlouquecer uma por uma. até mesmo as mendigas sujas loucas e asmáticas. o crime é farto, you know.

o poeta rock n' roll subversão chega ao bar com seu fox vermelho e convida qualquer uma das mulheres que lá bebem cerveja. e ela, a mulher, há de aceitar a proposta irrisória. o poeta rock n' roll subversão abre a caixa de pandora versão maldades e deste maligno lugar tudo sai. feito o convite, ambos se embriagam loucamente - seus corpos clamam por sexo. e o poeta rock n' roll que é - por natureza - um tanto charming e malicioso, consegue fazer com a pobre mulher tudo o que deseja.

oh meu deus, o poeta rock n' roll - religiosos são os meus espamos quando penso nele. há o deleite e o delírio, e o poeta - incansável - tortura não somente as mulheres de bar (as típicas mulheres de bar). ele tortura esta que vos escreve - quão maldoso é este homem, deus.

o poeta rock n' roll - espécie de supra-sumo de todos os verdadeiros galanteadores - me fala coisas ao ouvido, me lambe a cara, passa a mão em minha perna, me coloca em seu fox vermelho (matadouro) e lá vamos nós para uma rua escura em algum lugar da santa cecília.

meu deus, o poeta rock n' roll subversiones e olhar de louco-devasso anda romantizando todas as situações. e eu, d. lopes, me flagro totalmente entregue aos delírios deste homem perigoso. deus.


algemas, por favor.