02 dezembro 2010

barbies, carlton, cinquenta reais e batom chinês

estava escrevendo poesia e deu-se outro escrito, que é real, e é este:


volto a ser menina e virgem. tenho sete anos de idade. uma coitada. menina como antes, moradora do sobrado número 7 na rua félix lattuada, extremamente magra, cabelos castanhos na altura dos ombros, quase estrábica, banguela, fina e frágil. uma verdadeira daminha. simpática, sorridente, de uma educação vitoriana e tão, mas tão educada que deixava todos me roubarem. sim! me roubavam barbies, me roubavam brinquedos, me roubavam em trocas injustas, me roubavam tudo. a filha dos donos da loja de brinquedos, ela tem tudo, vamos roubá-la! e mamãe, oh, vera vera, uma rainha! nada me dizia, nem brigava e assim cresci, livre para me defender ou me permitir furtos, furtos infantis, furtos dolorosos. pois minhas amigas, minhas melhores amigas, aquelas que comiam o delicioso bolo de mamãe, me roubavam! mamãe sabia e nada falava, mesmo brava, mulher brava que era, sim! quase má.


então cresci. tinha já meus doze anos, ainda não menstruara, nem nada. continuava magra, agora um pouco mais feia, desengonçada, chegando à adolescência. mudei-me de casa. rua avaí, água rasa, quase mooca. lá, conheci uma garota, elaine. onze anos, loira, magra e muito pequena. seu pai era químico, austero, de olhos muito claros. já a mãe era dona de casa, tinha uma pele mal cuidada, cabelos descoloridos sempre presos e cheirava insuportavelmente a cigarro. começamos, então, a roubar os cigarros da velha por diversão. maços de carlton, que vinham diretamente do paraguai, pois a mulher comprava caixas e caixas fechadas. roubamos uma vez, depois outra e outra. roubar parecia delicioso! fumávamos. fumávamos nas ruas, nas férias, pela manhã, nos escondendo dos vizinhos atrás dos carros. elaine era cobra criada, eu sabia. mas sua maldade era divertida e tentadora. e depois, roubamos sua vó. uma velhota que morava na rua de baixo. desta vez, fomos mais longe, roubamos cem reais. cinquenta pra mim, cinquenta pra ela. teve plano, estratégia, tudo friamente calculado. uma entretia a velha na cozinha, a outra entrava no quatro, abria a caixinha de madeira e metia a mão na grana. não lembro o que elaine fez com sua parte. já eu, fui à uma loja e comprei um boné. comprei para roberto, meu amor roberto, meu amor secreto, velado. amava-o, amava-o tanto! eu, que até então jamais beijara outros lábios que não os meus próprios, no espelho, fazendo testes e testes, para um dia beijar roberto, o amor da minha vida. tinha certeza, certeza absoluta que era ele!

alguns meses ou anos depois, uma grande surpresa (ou não): flagrei elaine roubando um objeto meu, um batonzinho chinês que custara menos de um real. numa certa noite, durante um jantar com meus pais, elaine empertigou-se com uma desculpa esfarrapada e disse que havia esquecido algo em meu quarto. subiu as escadas. larguei os talheres no prato e subi atrás, escondida, desconfiada, já pressupondo o furto. abri a porta do quarto e lá estava. qual não foi a expressão de horror que vi no rosto daquela criatura, roubando meu batom e, argh!! expulsei-a de minha casa praticamente a pontapés e nunca mais roubei, nunca mais, nunca! a não ser em jogatinas na praia, depois de adulta. roberto nunca beijei. tampouco entreguei-lhe o boné. tampouco foi o amor de minha vida.