04 maio 2014

um texto de sete anos atrás

fuçando uns cds de back up, achei esse texto. nada demais, mas foi doce ler algo antigo. a informação do arquivo me diz que ele foi criado em 19 de março de 2007.


JOAQUIM

O Joaquim disse que ter coração não é suficiente. Disse que amar um homem é diferente de amar uma mulher. Disse que beber uísque duplo é diferente de beber uísque só uísque. Eu perguntei o que era uísque só uísque e ele me respondeu: uísque. Eu tinha receio de abrir demais o coração porque temia respostas sujas que ele soltava quando estava cheirado demais. Contei que queria parar de cheirar e ele mandou eu me foder e falou que quanto mais você cheira, mais quer cheirar. Disse que não existe fim, não existe final feliz que nem em filme junkie. Falou com essas palavras. Eu retruquei que nem todo filme junkie termina bem e ainda falei: tu é que não entende porra nenhuma de cinema. Ele riu.

Quando desembesta a falar de cinema, vai do noir até a nouvelle vague. Aí emenda com a história da bossa nova, Beatles, Elvis, Doors, volta pra Elis, vai pra Adoniran Barbosa, passa por Chet Baker, Ray, Glenn Miller, conta toda a história da Blue Note e eu fico ali, embasbacada com o Senhor Enciclopédia Cultura de Boteco. É bom ouvir, mas não sempre. Minha vontade era beber mais, falar putaria e ouvir o quanto ele conseguia ser inteligentemente escroto sobre as coisas da vida. Elogiou meu vício de criar personagens e eu falei que ele ainda seria um personagem meu. Sorriu bonito quando eu falei, mas depois abaixou a cabeça, envergonhado. Contou do último cara com quem trepou, quem meteu em quem, quem chupou quem, falou que o cara saiu pra comprar camisinha correndo logo no começo da trepação porque viu que o negócio não ia ficar só no primeiro blowjob. Eu gargalhava feito retardada no meio do bar, já sem expectativa de acabar a noite sóbria. Fiz um resumo dos últimos meses vividos. A garota que me deixou, minha loucura por drogas, cigarros e comprimidinhos pra dormir. Ele ouviu mais com os olhos do que com os ouvidos. No meio da história toda, pegou na minha mão por cima da mesa. 

Me ouviu sem fazer muitas expressões faciais decifráveis. Eu me sentia numa reunião de AA. Joaquim criticou o fato de nos drogarmos tanto. Eu disse que não era nem prazer, tinha virado necessidade. Ele fez que sim com a cabeça. Acendi um cigarro, tirei os óculos dele e os coloquei em mim, fazendo graça. Joaquim pediu outra a cerveja ao garçom e me mandou tirar a porra dos óculos, porque eu parecia uma retardada. Dei risada. O garçom devia pensar que éramos irmãos pra tamanha intimidade. Coloquei os óculos no Joaquim bem devagarzinho. E ele, imitando bicha afetada, falou: Não faz a sexy, vai. E a gente gargalhava. 

Ele tinha essa coisa encantadora e repulsiva. Dava vontade de amar e odiar. No fundo, eu sentia pena do Joaquim. Ele era um cara lindo, foda e inteligente até os ossos, é verdade. Meio poeta, meio marginal, louco. Mas eu me perguntava porque os caras sempre se afastavam dele. Pensei que talvez fosse a cocaína em excesso. Pensei porque vivo isso. Sempre tem alguém se afastando. Mas, porra, o Joaquim era tão único. Enquanto esperava ele voltar do banheiro, não conseguia parar de pensar: Tenho medo de ser só como ele é. Não pelo fato de morar sozinho, mas sim por temer tanto dividir as coisas com alguém. O Joaquim tem uma alma sozinha. Por mais que esteja com um homem bom, não consegue se entregar. Cheguei a conclusão que também tenho essa coisa meio amargurada. É uma espécie de dor própria que não tem cura. Um peso que se arrasta da fase umbilical até o fim da vida. Não sei se o que nos conecta é o fato de sermos gays e junkies. Mas alguma coisa conecta, e é de uma forma perfeita. Existe irmandade e respeito. Existe uma ligação de amor violento e bruto. Bruto no sentido de puro, esperando ser lapidado.
O Joaquim voltou do banheiro. Minha vontade de filosofar sobre as nossas vidas passou. Sentou na minha frente, nossas pernas se aproximaram. Sexy, meio descabelado, junkie, sem limite, lindo. Acendeu um cigarro e sorriu pra mim. Único.

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