não me lembro da cor do ferro de passar roupa. chuto
branco com azul. tampouco decorei seu lugar de descanso: talvez dentro da
portinha lateral, perto da parede.
o embrutecimento
apagou muitas informações da minha surrada cabeça que, com o tempo, passou a nutrir certas
obsessões, como salvar fotos de pessoas vendendo roupas na internet. não
são quaisquer fotos. só salvo imagens com animais. o critério para a roupa é zero. só o que importa é a existência do bicho nela. um sapato
boneca vermelho escuro com um gato ao fundo. um casaco de lã verde clarinho e
um shih tzu dormindo na poltrona. “vendo mala de viagem com rodinhas. R$ 70
negociáveis. entrego na linha verde. o cachorrinho da foto não vai junto rsrs”, diz
o anúncio. por que o animal está lá? se o animal não está a venda, por que ele
está lá? ele quis estar lá? você mexeu na cena? você colocou um bicho
estrategicamente para a sua foto chamar mais atenção? você é algum tipo de
profissional do anúncio? você sempre vende coisas na internet? você poderia me dar algumas informações sobre o seu bichinho de estimação? são tantas as perguntas que rodam dentro da minha
cabeça, mas não posso levá-las adiante porque seria duma neura desproporcional dividir isso com os anunciantes.
lembro da batedeira. é preta e prata. nunca foi usada.
está no móvel em cima da geladeira. talvez mais pra esquerda.
doentíssima e
prestes a explodir durante um trabalho acadêmico, recorri ao hospital público
da lapa para tomar uma injeção que me tirasse do limbo. bolotas brancas de pus recheavam minhas amídalas
[“amídala” é uma palavra tão feminina]. quando adentrei a casa das injeções, um
enfermeiro de uniforme verde-cor-de-hospital limpava grandes facas que respingavam sangue debruçado
no que parecia ser uma pia de açougue. não era exatamente isso, mas era assim que meu estado febril e confuso via a vida naquele momento. o sujeito passou a
perguntar coisas desconexas e desinteressantes sobre a minha manga oriental no
braço esquerdo, outra coisa que constantemente me esqueço de ter. esse desenho
está há dez anos no meu braço. é difícil responder se “doeu”. doeu, caralho,
mas faz dez anos. dou respostas genéricas: “ah, doeu, mas faz tempo”.
precisei ser razoavelmente polida. “benzetacil dói muito? minha mãe nunca me
deixou tomar porque dizia ser 'injeção para cavalo'”, mandei. verdade pura que nunca
soube o que minha progenitora queria dizer com essa enigmática e animalesca expressão. e verdade pura 2 que mamain nunca me
deixou tomar a tal injeção. “arde um pouquinho”, disse o homem.
"benzetacil dói muito?"
confiei.
humildemente, ofereci minha nádega esquerda (sempre a esquerda). enquanto o homem descrevia seus planos para próximas tatuagens, subi
minha calça jeans atordoada e com o buço repleto de gotículas de suor sofrido. em slow motion, o enfermeiro me atormentava com desenhos, dragões, verdes e azuis,
vizinho tatuador, paguei 200 nessa, mas o traço ficou grosso, fiz o símbolo do corinthians.
e, como se uma multidão batesse palmas ritmicamente dentro da minha cabeça
ovalada, eu piscava devagar e sorria amarelo para o bolo de informações verbais
e intramusculares que me eram enfiadas simultaneamente.
saí do hospital
meio sorridente. peguei um ônibus para ir até a puc. quando desci na cardoso de
almeida – a clássica rua transeunteada por estudantes angustiados com baixo salários
de estágio e cheios de pressão e expectativa por parte de pais opressores e
donos de veículos monstruosamente grandes (não era o meu caso, bolsista filha
de pais sem curso superior ou carro) –, uma chuva torrencial caiu. caiu. uma
chuva tremenda. avassaladora. em cima de mim, cheia de antibiótico dentro da
bunda e da alma. e como uma espécie de protagonista dum clipe imaginário de segue o seco, da marisa monte, me
entreguei com lassidão à água gelada parida pelo céu.
chegando na ilha
de edição da faculdade, o sujeito que ajeita as coisas tuda pros alunos parecia
desconfortável ao me fitar ensopada. quis me emprestar sua jaqueta de couro. falei
que não precisava. com naturalidade e um fôlego inexplicável, eu tirava as botas de caúboi e
as meias enquanto ele ligava o computador. “vou ficar
bem. tomei uma benzetacil”, expliquei (querendo me exibir um pouco pela coragem) enquanto sorria leve. atônito, ele me
deixou na salinha cafona com ares de anos 90 e paredes de fórmica amarelada –
um lugar zero inspirador. doenta e contenta, fiz o que tinha de fazer. a vida
me secou.
a vida me secou.