09 abril 2016

aqueles cachorros não me faziam feliz

vi fotos dela dia desses e, claro, ontem sonhei. apareceu pra mim com o cabelo sujo, óleo puro, e cara de coitada. escreveu seu nome num pedaço de embalagem de escova de dentes seguido por “colou aqui”. essa era a mensagem. ela estava lá. soube por outrem que apareceu em casa porque pediu pra passar por baixo da catraca no metrô. sem grana, supus. estávamos sendo formalmente apresentadas. pela vida, não por alguém. já sabíamos uma da outra.

me trouxe presentes: dois cães pequenos e estranhos. um deles de pelo áspero e levemente caolho. o outro, um vira-lata diminuto, quase chihuahua. amante de bichos, não senti nada. aqueles cachorros não me faziam feliz. mistério impermisto. desconcertante.

então afeita à ideia de cuidar de novos filhos, convidei os dogs para a realização de suas tarefas fisiológicas naturais. “vamos fazer xixi.” ambos subiram no sofá forrado por um lençol velho e cafona e mijaram ali mesmo. muito. litros de mijo amarelo.

instantaneamente, a raiva me subiu pela carcaça. corri atrás dela, que provavelmente planejou a mijada para me desarranjar emocionalmente. cadê, cadê você. encontrei-a no topo de um prédio. o dia estava cinza, os ares bagunçados. ela parecia usar pijamas. ainda com cara de coitada, só que agora com a pele mais amarela ainda. e acordei.

outro dia, um amigo me mandou oi pelo whatsapp e o auto corretor trocou “débora” por “densidade”. algo no ar me sugere feito vento no nariz que, costumeiramente burra, a máquina acertou na sugestão. vez em vez é muita noia. guenta.


04 janeiro 2016

na mente, sentido leme

a caravana segue enxuta, com um quórum significativo e potente, porém menor. não há problema agora. todos eles passaram – e, hoje, reluzem à sombra do quase-esquecimento e das memórias indeléveis. foda-se.

de vestido e pernas cruzadas respondo às questões do analista, sempre abertas. minhas respostas são longas. teimo em afirmar meus “quase 30”, mas ainda estou na casa dos 20. tento também não nomear o gado, mas a história fica confusa. vez ou outra repito o perfil da vítima.

– quem tira o seu sono?

– ninguém.

e se insistentemente vem à mente cheiros, nomes e horrores, pego um papel toalha e um veja, saio limpando qualquer coisa, acendo um cigarro. bem tranquila prum biótipo astral áries em leão. dá até orgulho.

esse recibo não assino. só pra ele, que me pega desprevenida em lágrimas, aterrorizada. pra ele, sim.

rezo mentalmente: vamos ali no BRS 3 pegar o 472 sentido praia do leme.

e se na noite anterior levantei de supetão dum sonho ruim, foi prazer total ver o céu ir do escuro ao lilás. enrolada no cobertor em pleno verão. são paulo é bipolar.


eu sigo em frente. e vou a pé só pra apreciar o caminho.

20 abril 2015

minha cabeça é como uma moto

não me lembro da cor do ferro de passar roupa. chuto branco com azul. tampouco decorei seu lugar de descanso: talvez dentro da portinha lateral, perto da parede.

o embrutecimento apagou muitas informações da minha surrada cabeça que, com o tempo, passou a nutrir certas obsessões, como salvar fotos de pessoas vendendo roupas na internet. não são quaisquer fotos. só salvo imagens com animais. o critério para a roupa é zero. só o que importa é a existência do bicho nela. um sapato boneca vermelho escuro com um gato ao fundo. um casaco de lã verde clarinho e um shih tzu dormindo na poltrona. “vendo mala de viagem com rodinhas. R$ 70 negociáveis. entrego na linha verde. o cachorrinho da foto não vai junto rsrs”, diz o anúncio. por que o animal está lá? se o animal não está a venda, por que ele está lá? ele quis estar lá? você mexeu na cena? você colocou um bicho estrategicamente para a sua foto chamar mais atenção? você é algum tipo de profissional do anúncio? você sempre vende coisas na internet? você poderia me dar algumas informações sobre o seu bichinho de estimação? são tantas as perguntas que rodam dentro da minha cabeça, mas não posso levá-las adiante porque seria duma neura desproporcional dividir isso com os anunciantes. 

lembro da batedeira. é preta e prata. nunca foi usada. está no móvel em cima da geladeira. talvez mais pra esquerda.

doentíssima e prestes a explodir durante um trabalho acadêmico, recorri ao hospital público da lapa para tomar uma injeção que me tirasse do limbo. bolotas brancas de pus recheavam minhas amídalas [“amídala” é uma palavra tão feminina]. quando adentrei a casa das injeções, um enfermeiro de uniforme verde-cor-de-hospital limpava grandes facas que respingavam sangue debruçado no que parecia ser uma pia de açougue. não era exatamente isso, mas era assim que meu estado febril e confuso via a vida naquele momento. o sujeito passou a perguntar coisas desconexas e desinteressantes sobre a minha manga oriental no braço esquerdo, outra coisa que constantemente me esqueço de ter. esse desenho está há dez anos no meu braço. é difícil responder se “doeu”. doeu, caralho, mas faz dez anos. dou respostas genéricas: “ah, doeu, mas faz tempo”. precisei ser razoavelmente polida. “benzetacil dói muito? minha mãe nunca me deixou tomar porque dizia ser 'injeção para cavalo'”, mandei. verdade pura que nunca soube o que minha progenitora queria dizer com essa enigmática e animalesca expressão. e verdade pura 2 que mamain nunca me deixou tomar a tal injeção. “arde um pouquinho”, disse o homem.

"benzetacil dói muito?"

confiei. humildemente, ofereci minha nádega esquerda (sempre a esquerda). enquanto o homem descrevia seus planos para próximas tatuagens, subi minha calça jeans atordoada e com o buço repleto de gotículas de suor sofrido. em slow motion, o enfermeiro me atormentava com desenhos, dragões, verdes e azuis, vizinho tatuador, paguei 200 nessa, mas o traço ficou grosso, fiz o símbolo do corinthians. e, como se uma multidão batesse palmas ritmicamente dentro da minha cabeça ovalada, eu piscava devagar e sorria amarelo para o bolo de informações verbais e intramusculares que me eram enfiadas simultaneamente.

saí do hospital meio sorridente. peguei um ônibus para ir até a puc. quando desci na cardoso de almeida – a clássica rua transeunteada por estudantes angustiados com baixo salários de estágio e cheios de pressão e expectativa por parte de pais opressores e donos de veículos monstruosamente grandes (não era o meu caso, bolsista filha de pais sem curso superior ou carro) –, uma chuva torrencial caiu. caiu. uma chuva tremenda. avassaladora. em cima de mim, cheia de antibiótico dentro da bunda e da alma. e como uma espécie de protagonista dum clipe imaginário de segue o seco, da marisa monte, me entreguei com lassidão à água gelada parida pelo céu.

chegando na ilha de edição da faculdade, o sujeito que ajeita as coisas tuda pros alunos parecia desconfortável ao me fitar ensopada. quis me emprestar sua jaqueta de couro. falei que não precisava. com naturalidade e um fôlego inexplicável, eu tirava as botas de caúboi e as meias enquanto ele ligava o computador. “vou ficar bem. tomei uma benzetacil”, expliquei (querendo me exibir um pouco pela coragem) enquanto sorria leve. atônito, ele me deixou na salinha cafona com ares de anos 90 e paredes de fórmica amarelada – um lugar zero inspirador. doenta e contenta, fiz o que tinha de fazer. a vida me secou.


a vida me secou. 

01 abril 2015

la barca

ela limpou os restos de um batom rosa feio (que não saiu dos lábios nem depois de uma lata inteira de coca) com o guardanapo, tirou da bolsa uma bic com a tampa toda mordida, escreveu um troço e me deu. "lê depois."

quando entrei no ônibus, abri o papel:

nunca mais fui bonita. nunca mais fui feliz.

25 novembro 2014

principalmente em 1987

sou uma pessoa sem lençóis. chego a botar o lençol úmido, recém-tirado do varal, na cama da gata-garota pois não tenho outro. essa música. muitas mulheres choraram sozinhas em seus quartos ouvindo essa música. principalmente em 1987. fazia todo sentido. uma chorou porque jorge convidou a secretária para ir ao barzinho. outra chorou porque o professor da faculdade não entendeu seu texto cheio de manha. tudo isso dói. besteira pura, você pensa, mas você está sempre errado. você não ronrona, seu estômago não ronca. você sabe nada. nem amar você ama. seu timbre de voz irrita todo mundo no trabalho. você queima o macarrão. seu bocejo não tem febre. você não manja porra alguma da poesia das comidas queimadas.

também sou uma pessoa com cara de poucos amigos porque nenhum amigo me oferece um lençol. não é possível. não existe nenhum lençol velho por aí?

finjo que durmo. dou um ronrono, conto até três em silêncio. vejo esse abajur vermelho. esse abajur vermelho me vê. sinto uma onda de calor. a febre canta com voz de sereia dentro das estranhas entranhas. brinco de estar no mar. até pelada. eita que eita. de que adianta, criança, ter um chapéu em cima da pilha de roupas limpas? porque sou e estou completamente sozinha e com febre. me proponho a auto-sabotagem.

picolé de nuvem, que saudade do lençol de vento que você me comprou. ou nenhuma saudade. ou tudo.