10 maio 2014

cartas perdidas e achadas - parte II

troca de cartas perdidas e achadas no tempo-espaço. por débora lopes e victor bauab.
leia a parte I aqui.


querido b.,

acordei de sobressalto às seis da manhã, passei uma hora olhando pro teto e então resolvi te escrever. reli a sua carta algumas vezes antes de começar uma nova. fucei nos meus vinis e procurei um jazz para me servir de trilha sonora, mas acabei selecionando uma compilação de canções do orlando silva. talvez você saiba, mas mesmo assim gosto de contar. quando jovem, esse homem que hoje me agracia com um timbre tão grave trabalhou como vendedor de tecidos, sapateiro e cobrador de ônibus. quando era office boy, sofreu um acidente ao descer de um bonde com uma encomenda em mãos. parte de seu pé teve de ser amputado e ele ficou um ano parado, trancafiado em casa. dizem que silêncio é ouro. mas acho que paciência também é.

não é triste?

veja bem, prefiro que mantenhamos contato por cartas. isso significa que se você perdeu o papel com o meu telefone, a vida quis assim, por isso não irei te passar o número novamente. não é questão de orgulho. por favor, estamos em 1988, essa coisa de amor-próprio já está cafona. sejamos minimamente modernos.

não queria, mas sorri quando você disse ter olhado para o meu prédio e tentado adivinhar qual era o meu apartamento. infelizmente você não acertou. já tive girassóis, mas eles morreram. ainda assim, mantenho um singelo pé de manjericão na varanda. ou alfavaca, como preferir. lenda: coloque uma folha de manjericão fresca na mão de alguém. se a folha murchar, a pessoa é promíscua. você acredita nessas coisas? eu nunca tentei. na verdade, eu nunca quis saber se alguém era ou não promíscuo. eu nunca me enfiei assim na vida de alguém. ou nunca tive interesse o suficiente em obter uma informação combalida e inconclusiva como essa.

tenho vontade de te escrever muitas coisas. contar muitas coisas. mas algo em mim diz: não se entregue, não se entregue. e essa luta, que não sei quão necessária é quando falamos dum amor que começa, parece interminável. não quero viver sobre um ringue.

e de repente tudo fica amarelado, como são paulo banhada pela luz do sol que chega cedo. então ouço as primeiras buzinas, os ônibus passando, a voz dos vendedores pela calçada, o som de um motor fundido de motocicleta abafando o cantar genuíno de algum passarinho em meio a selva.

orlando silva canta que quem nunca chorou por amor nunca amou.

“talvez nem alma tenha para sentir”

um beijo calmo e rosa-quase-vermelho,

lourdes


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my bright flower,

a chuva parou & agora o sol ilumina minha janela. de não muito longe, a música cubana soa da cozinha da vizinha cubana, logo na porta em frente. estava ansiosíssimo para receber notícias tuas, mas parece que tudo se esfriou com a escrita concreta. ao esperar tua carta, meu coração fervia rubro e quando te li, era tão assim eu lendo um livro e você ouvindo uma música. tão sem estilo.

nestes tempos, abandonei tudo. minha barba está imensa, mas não vejo motivos para tirar. sou apegado demais às coisas (vênus em câncer) e, além do mais, a cada dia me pareço mais com Ginsberg, o poeta da minha juventude.

não entendo tua canhestrice, por deus. alice disse: a vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida. acho que ela é apaixonada demais por vinícius. ou talvez seja isso mesmo, o desencontro. eu já te disse: eu não penso mais no M. já passou o frio dos primeiros dias. hoje eu o maldigo, rasgo todas as cartas, criei um desgosto daquele sorrisinho dele, do pau dele, daquela gentileza fajuta que ele alardeava. mas não tenho mexido no assunto. ele também nunca ligou porque deve estar ouvindo aquela música cafona de teclados modernos e gritinhos desafinados com aquele rapazinho que diz ser seu namorado. marina, uma amiga que você não conhece, me alertava que "le rouge et le noir ne s'épousent-ils pas", mas eu não queria dar bola. eu devia ouvi-la mais.

estou ouvindo muito roberto esses dias e cheguei a uma conclusão: tudo que eu gosto é ilegal, é imoral ou engorda. mas engraçado você comentar sobre orlando silva. na segunda, comprei uma vitrola nova e ganhei um lp dele de brinde. na capa, ele me olha sério com aquele olho de peixe. depois que coloco o disco para rodar, me vem "nada além" e você veio à cabeça como que eu estivesse premonizando tua correspondência. você sabe, meu signo não me deixa ser lá muito persistente, mas o que sinto por você é muito puro. desde que te vi pela primeira vez, enxerguei cores nunca dantes vistas e meu coração pulsava só em saber que o teu também pulsava em algum lugar & não só o coração & não é brincadeira & você sabe.

Pedro veio até minha casa e pedro não parava de pular nele. fiquei encabulado por batizar meu cachorro com o nome dele, mas sempre achei pedro tão bonito...talvez por isso tenha me apaixonado por ele. mas agora, ele é adepto do "amor livre". que besteira, céus! isso é coisa da década passada! malditos hippies! ou sou careta demais, mas que seja. sinto saudade de trocar com pedro naquele dia-a-dia de sol e lençol.

não devia te contar, mas aí vai: você deixou uma parte de baixo aqui em casa, achei outro dia enquanto procurava o livro de huysmann perdido pelo quarto. uma calcinha branca com uma coisinha na frente. ou atrás. me masturbei com ela no rosto. desculpe. precisava fazer isso. sou homem, ora! mas não me deixe aqui sozinho, por favor. não sei como te pedir isso. pense em lupicínio, em gal costa. eu não consigo viver sem teu braço, pois meu corpo está acostumado...

um beijo & uma saudade que está transformando meu corpo em pó,

b.


04 maio 2014

um texto de sete anos atrás

fuçando uns cds de back up, achei esse texto. nada demais, mas foi doce ler algo antigo. a informação do arquivo me diz que ele foi criado em 19 de março de 2007.


JOAQUIM

O Joaquim disse que ter coração não é suficiente. Disse que amar um homem é diferente de amar uma mulher. Disse que beber uísque duplo é diferente de beber uísque só uísque. Eu perguntei o que era uísque só uísque e ele me respondeu: uísque. Eu tinha receio de abrir demais o coração porque temia respostas sujas que ele soltava quando estava cheirado demais. Contei que queria parar de cheirar e ele mandou eu me foder e falou que quanto mais você cheira, mais quer cheirar. Disse que não existe fim, não existe final feliz que nem em filme junkie. Falou com essas palavras. Eu retruquei que nem todo filme junkie termina bem e ainda falei: tu é que não entende porra nenhuma de cinema. Ele riu.

Quando desembesta a falar de cinema, vai do noir até a nouvelle vague. Aí emenda com a história da bossa nova, Beatles, Elvis, Doors, volta pra Elis, vai pra Adoniran Barbosa, passa por Chet Baker, Ray, Glenn Miller, conta toda a história da Blue Note e eu fico ali, embasbacada com o Senhor Enciclopédia Cultura de Boteco. É bom ouvir, mas não sempre. Minha vontade era beber mais, falar putaria e ouvir o quanto ele conseguia ser inteligentemente escroto sobre as coisas da vida. Elogiou meu vício de criar personagens e eu falei que ele ainda seria um personagem meu. Sorriu bonito quando eu falei, mas depois abaixou a cabeça, envergonhado. Contou do último cara com quem trepou, quem meteu em quem, quem chupou quem, falou que o cara saiu pra comprar camisinha correndo logo no começo da trepação porque viu que o negócio não ia ficar só no primeiro blowjob. Eu gargalhava feito retardada no meio do bar, já sem expectativa de acabar a noite sóbria. Fiz um resumo dos últimos meses vividos. A garota que me deixou, minha loucura por drogas, cigarros e comprimidinhos pra dormir. Ele ouviu mais com os olhos do que com os ouvidos. No meio da história toda, pegou na minha mão por cima da mesa. 

Me ouviu sem fazer muitas expressões faciais decifráveis. Eu me sentia numa reunião de AA. Joaquim criticou o fato de nos drogarmos tanto. Eu disse que não era nem prazer, tinha virado necessidade. Ele fez que sim com a cabeça. Acendi um cigarro, tirei os óculos dele e os coloquei em mim, fazendo graça. Joaquim pediu outra a cerveja ao garçom e me mandou tirar a porra dos óculos, porque eu parecia uma retardada. Dei risada. O garçom devia pensar que éramos irmãos pra tamanha intimidade. Coloquei os óculos no Joaquim bem devagarzinho. E ele, imitando bicha afetada, falou: Não faz a sexy, vai. E a gente gargalhava. 

Ele tinha essa coisa encantadora e repulsiva. Dava vontade de amar e odiar. No fundo, eu sentia pena do Joaquim. Ele era um cara lindo, foda e inteligente até os ossos, é verdade. Meio poeta, meio marginal, louco. Mas eu me perguntava porque os caras sempre se afastavam dele. Pensei que talvez fosse a cocaína em excesso. Pensei porque vivo isso. Sempre tem alguém se afastando. Mas, porra, o Joaquim era tão único. Enquanto esperava ele voltar do banheiro, não conseguia parar de pensar: Tenho medo de ser só como ele é. Não pelo fato de morar sozinho, mas sim por temer tanto dividir as coisas com alguém. O Joaquim tem uma alma sozinha. Por mais que esteja com um homem bom, não consegue se entregar. Cheguei a conclusão que também tenho essa coisa meio amargurada. É uma espécie de dor própria que não tem cura. Um peso que se arrasta da fase umbilical até o fim da vida. Não sei se o que nos conecta é o fato de sermos gays e junkies. Mas alguma coisa conecta, e é de uma forma perfeita. Existe irmandade e respeito. Existe uma ligação de amor violento e bruto. Bruto no sentido de puro, esperando ser lapidado.
O Joaquim voltou do banheiro. Minha vontade de filosofar sobre as nossas vidas passou. Sentou na minha frente, nossas pernas se aproximaram. Sexy, meio descabelado, junkie, sem limite, lindo. Acendeu um cigarro e sorriu pra mim. Único.

03 maio 2014

para uma tortura bastar - parte III

leia a parte I e a parte II.

o mundo parou e voltou a ser mundo porque o sol bateu na janela e debaixo do lençol eu sentia o dia chegando quente.

- mora comigo?

nós passamos uma noite só juntos e ele quer que eu more com ele. sério mesmo que ainda existe romance no mundo? achei que as pessoas acreditassem em tesão, paixão, obsessão. amor, pra mim, é novidade. desde que meu casamento com o antônio desmoronou, foi muito difícil fraquejar e voltar a acreditar em sentimentos reais. é como se o tempo tivesse me endurecido. é como se eu tivesse perdido a ternura. trocadilho infeliz. eu sei.


suddenly, out of left field

came a lover and a friend

she was a lover and a friend

came out of nowhere



she made me a man

every thing is alright

how sweet it is



ele me acordou pedindo que eu fosse morar com ele e cantando percy sledge bem baixinho. levantei, coloquei minha calça jeans e ele fitava os meus peitos como um louco.

- eles cabem na minha mão, falou enquanto eu fazia um coque no cabelo e olhava ele deitado sem roupa com os braços atrás da cabeça.

minha alma sorri. é um lance que não tem nada mais nada a ver com o corpo, é muito pior, é quase infantil, é quase uma sede, uma loucura, tipo ser criança e precisar desesperadamente de uma bicicleta, é como se não desse pra respirar sem isso, é como correr pra entrar no metrô no último segundo antes da porta fechar, é como ter que esperar a porra da sopa esfriar pra dar a primeira colherada em julho, quando tá um frio do caralho. é conflituoso. é um sacrifício. é de perder o fôlego. é tipo um soluço que não passa. é como sonhar que você está pelada na frente da escola toda. ou de pijama.

amar é uma aflição.

- o que você faz da vida?, pergunto.

afinal, transei com um cara que mal sei quem é. o que sei é que ele tem um gosto musical incrível, cheio de poeira, e que casa perfeitamente com o meu apreço por velharias sonoras. mas música não é tudo. se ele disser que gosta de assistir big bang theory ou dexter, pego minhas coisas e saio dessa casa correndo.

- por que seu casamento acabou?, ele retruca.

- eu perguntei primeiro. o que você faz da vida?

e ao invés de responder, ele bateu com as mãos no colchão, me chamando pra perto. fui. deitei. e ele começou a tirar a minha calça e desfazer meu coque. deixei. e ele me respondeu.

- o que eu faço da vida a partir de hoje é te fazer feliz.

[continua...]